sexta-feira, 7 de dezembro de 2007

PRONÚNCIA do MP

Tribunal Administrativo e Fiscal de Flora

Processo n.º 3879/07 DABSB

(V/ Rfa.: 00001)

Exmo. Juiz de Direito:

Interposta a providência cautelar de suspensão de eficácia da licença concedida pelo Ministério do Ambiente á REN para edificação e funcionamento das linhas de alta tensão pela ”Associação Lugar do Ermo” às 03.30 de dia 29 de Novembro e a acção de impugnação do mesmo acto, nos termos do nº 1, do art.º 219º, da Constituição da República Portuguesa e ao abrigo do disposto nos artigos 51º, do ETAF e n.º 2, dos artigos 9º e 85.º do CPTA, considerando ser necessária e útil a sua intervenção vem o Ministério Público junto deste douto tribunal pronunciar-se sobre o mérito da causa em defesa do direito ao ambiente como bem constitucionalmente protegido.

Nos termos e ao abrigo dos n.ºs 4 e 5 do referido artigo 85º invoca, ainda, outras causas de invalidade diversas das alegadas nos requerimentos iniciais e requer a realização de diligências instrutórias nos termos e com os fundamentos seguintes:

PRONÚNCIA

Defesa do direito ao ambiente como bem constitucionalmente protegido.

A Lei Fundamental consagra o Meio Ambiente como um Bem ou Interesse Colectivo.

O artigo 66º da Constituição da República Portuguesa reconhece e consagra a preocupação social por uma qualidade de vida e defesa do meio ambiente nos seguintes termos: “Todos têm direito a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado e o dever de o defender”, continuando no nº2 por enunciar o papel do Estado relativamente à forma de o tornar efectivo, tendo em vista um desenvolvimento sustentável do país.

Estes preceitos constitucionais enquadram-se nos princípios orientadores da política social e económica que conformam os Capítulos I e II do Título III da Constituição da República Portuguesa relativos aos direitos e deveres económicos e sociais.

Por se tratar de princípios ou valores enformadores do ordenamento jurídico mas que carecem de concretização requerem exigências específicas no âmbito da sua aplicação enquanto bem jurídico colectivo.

As especificidades da sua aplicação derivam, desde logo, da própria generalidade e amplitude do conceito de meio ambiente pois embora a formulação de todos os direitos fundamentais acarrete um maior ou menor grau de indeterminação, no caso do direito ao meio ambiente essa indefinição é absoluta, como consequência do carácter transversal ou interdisciplinar deste bem jurídico, dado que os elementos que conformam o ambiente dizem respeito a todos os sectores da actividade humana e os seus danos têm múltiplas manifestações que, como esclarece o Tribunal Constitucional Espanhol, “van desde lo simplesmente incómodo a lo letal” (STC 102/1995).

Mas o caso espanhol é diverso do português, porque a Constituição espanhola prevê o denominado recurso de amparo, meio processual aparentemente muito amplo que permite que os cidadãos possam intentar acção contra a Administração sempre que se considerem lesados no seu direito ao ambiente. Ora, este instrumento processual não existe na legislação portuguesa. A doutrina e a jurisprudência espanholas têm-se insurgido contra este meio processual interpretando-o de forma restritiva. Donde resulta que não faz sentido enunciar critérios ou elementos que o componham, pois sempre se correria o risco de excluir algum factor ou elemento importante da protecção ambiental ou conceder esta via de protecção constitucional a qualquer perturbação sofrida pelo indivíduo como consequência de danos provocados por terceiros, desta forma a acção perderia os seus contornos de protecção reforçada de determinados direitos substantivos básicos e de direitos processuais fundamentais, para converter-se num recurso praticamente universal.

Em segundo lugar deve destacar-se o relativismo científico e técnico que domina esta matéria, e que faz com que uma acção que pareça neutra do ponto de vista ambiental, em virtude dos avanços científicos ou por novas circunstâncias passa a revelar-se necessária ou incompatível com a protecção do bem em causa. Baño Leon, fala na necessidade de concretizar em cada caso concreto o quantum de protecção do meio ambiente em relação aos demais direitos constitucionais, é algo unicamente determinável por acção do legislador, e em último lugar, por instrumentos administrativos (planos, estudos de impacto ambiental, actos administrativos).

A Constituição Portuguesa trata a matéria dos direitos económicos, sociais e culturais em que se inscrevem o direito ao ambiente como direitos de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias.

O meio ambiente é entendido como um direito de prestação que vincula os poderes públicos ao seu desenvolvimento e à necessidade de concretização de meios de tutela.

Por isso, não se trata de um direito directamente invocável pelos cidadãos tal como decorre da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (que inclui na Parte II do Tratado que a institui uma Constituição para a Europa cuja entrada em vigor sofre ela própria de impasse…)

Em relação ao direito ao ambiente, a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia integra-o nos direitos de solidariedade, estabelecendo que as “Políticas da União Europeia integrarão através do princípio de desenvolvimento sustentável um alto nível de protecção do meio ambiente e da melhoria da sua qualidade”.

Esta falta de aplicabilidade directa mediante a configuração de um direito constitucional subjectivo directamente aplicável é uma constante de todos os direitos de prestação, também denominados de 3ª geração porque implicam decisões de políticas públicas em que a margem de decisão é política e não jurídica. Veja-se a este propósito a Resolução do Conselho de Ministros nº 109/2007 vertida no Diário da República, I Série, nº 159, publicada a 20 de Agosto de 2007 que fixa a Estratégia Nacional de Desenvolvimento Sustentável. Compete ao Estado, “desenvolver sinergias em cinco áreas nucleares cobertas pelos objectivos 1 a 5”, a saber, qualidade ambiental; valorização territorial; crescimento económico; e, qualificação e desenvolvimento científico e tecnológico e coesão social”.

Em termos históricos, podemos identificar gerações de direitos humanos, correspondendo estas a momentos históricos de evolução dos direitos humanos ao longo dos tempos e do próprio conceito de Estado e da tutela que este atribui aos referidos direitos, numa lógica de complementaridade e de aprimoramento de cada um desses direitos e, no dizer de Vasco Pereira da Silva de “convívio de gerações”, com a realização simultânea de todas as dimensões.

A 1ª geração de direitos surge com o modelo de Estado Liberal como forma de protecção dos indivíduos contra o Estado nomeadamente através das liberdades individuais e os direitos de natureza cívica. Já os direitos de 2ª geração que marcam a passagem para o Estado Social implicam que este realize tarefas para a sua concretização tais como o direito à saúde, à habitação, à educação. A 3ª geração de direitos surge como resposta às novas ameaças da pessoa humana., no fundo, trata-se dos direitos dos indivíduos nas suas relações privadas tais como, o direito à protecção individual face á informática e à biotecnologia, e no caso em apreço, direito ao ambiente e à qualidade de vida.

Nesta altura o Ambiente foi transformado em bem jurídico fundamental. O legislador constitucional ao adoptar como tarefas fundamentais do Estado a promoção do bem-estar e a qualidade de vida bem como a defesa da natureza e do ambiente assegurando um correcto ordenamento do território nas alíneas d) e e) do artigo 9º, parece optar pela tutela objectiva destes direitos. Trata-se de uma norma programática enformadora de todo o ordenamento jurídico mas que, tal como referido anteriormente em relação ao ambiente e á qualidade de vida art.º 66 carece de concretização através da actuação dos diferentes poderes do Estado.

Seguindo a posição de Vasco Pereira da Silva o direito ao ambiente entendido como direito fundamental, goza simultaneamente da natureza de direito subjectivo e de estrutura objectiva da comunidade, ao qual é de aplicar o regime jurídico dos direitos liberdades e garantias, na medida da sua dimensão negativa, e o regime dos direitos económicos, sociais e culturais, na medida da sua dimensão positiva.

Os direitos à habitação condigna, à segurança social, a serviços de saúde, embora sejam reconhecidos como bens constitucionalmente protegidos, não são facilmente susceptíveis de concretização judicial pois existem múltiplas formas de reconhecimento do direito e qualquer uma delas diz respeito a direitos de terceiros dada a natureza limitada dos recursos públicos e as diferentes políticas públicas e níveis de protecção que a sociedade democrática tem ao seu dispor. Assim, teremos de considerar no presente caso que quando estamos perante direitos conflituantes, impõe-se determinar se prevalece o direito à saúde e a um meio ambiente sem qualquer tipo de perturbação ao nível do ruído, ou a realização do interesse público resultante da circulação de energia que o Estado considera meio idóneo para melhoria da qualidade de vida da colectividade considerada no seu todo.

Importa não esquecer que o direito ao meio ambiente é visto não tanto como um direito fundamental mas sim como princípio orientador do ordenamento, e este princípio tem como finalidade a defesa de um bem ou interesse colectivo, reconhecido em benefício directo da colectividade e cujo quantum de protecção, em relação aos demais direitos e bens constitucionais, é algo que compete determinar ao legislador.

Vasco Pereira da Silva discorda em total desta abordagem considerando que a Constituição da República Portuguesa é clara na tutela das questões ambientais. Nela estão vertidos os valores fundamentais da comunidade fazendo, por isso, parte da constituição material. Assim, o preceituado nos artigos 9º d) e e), e 66º constituem a base dos princípios e valores do meio ambiente como bem jurídico fundamental na perspectiva de concretização do direito, maxime na feitura de leis, como limite à actuação da Administração e, cabendo aos tribunais a tarefa da interpretação do que constitui em cada momento o “bem jurídico”, sempre numa linha de ponderação dos valores em causa.

Relativamente ao caso em apreço, temos de ponderar os interesses em jogo, necessariamente conflituantes, a saber do direito à saúde e ao ambiente invocado pelo demandante, por um lado e, o direito à qualidade de vida e ao desenvolvimento sustentável do país por outro.

A necessidade de determinação em cada momento do equilíbrio entre os interesses concorrentes aparece especialmente destacada nas sentenças do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos relativamente aos danos sofridos em consequência do ruído nos aeroportos. São célebres os casos Powell and Rayner contra o Reino Unido (Sentença de 21 de Fevereiro de 1990) e Hatton e outros contra o Reino Unido (8 de Julho de 2003), em que o Tribunal conferiu especial destaque à necessidade de o Estado decidir de acordo com o critério do “justo equilíbrio” entre os interesses correspondentes aos indivíduos e os interesses da comunidade considerada no seu conjunto. Embora reconhecendo que o Tribunal o Estado goza de uma certa margem de discricionariedade não pode deixar de fundamentar a sua opção baseando-a em estudos e pareceres favoráveis. Nos referidos casos acabou por considerar que o Estado não tinha excedido a referida margem de discricionariedade.

Alegação de causas de invalidade - violação dos princípios da actividade administrativa específicos em matéria do ambiente consagrados nas alíneas e), do artigo 9.º e 66.º da Constituíção da Républica Portuguesa

O Principio da Prevenção encontra consagração expressa no n.º 2 do artigo 66.º da CRP que estabelece “que para assegurar o direito ao ambiente (...) incumbe ao Estado (...): ” “ a) prevenir e controlar a poluíção e os seus efeitos e os seus efeitos e as formas prejudiciais de erosão ”.

A Lei n.º 11/87, de 7 de Abril, Lei de Bases do Ambiente, consagra também na alinea a), do artigo 3.º, expressamente, como princípio específico do ambiente o da prevenção segundo a qual “as actuações com efeitos imediatos ou a prazo no ambiente devem ser consideradas de forma antecipativa, reduzindo ou eliminando as causas, prioritariamente á correcção dos efeitos dessas acções ou actividades susceptíveis de alterarem a qualidade do ambiente, sendo o poluidor obrigado a corrigir ou a recuperar o ambiente, suportando os encargos daí resultantes, não lhe sendo permitido continuar a acção poluente”.

No caso da presente autorização encontra-se violado o principio da prevenção, principio constitucional fundamental, que defendemos dever ser entendido segundo a doutrina defendida pelo Professor Doutor Vasco Pereira da Silva em “ Verde Cor de Direito – Lições de Direito do Ambiente” reimpressão a pág. 71, considerando que não foram ponderadas na decisão a antecipação de decisões potencialmente perigosas de origem natural e humana para evitar riscos concretos e imediatos ou riscos futuros e indetermináveis a fim de serem tomadas medidas destinadas a evitar efeitos danosos para o ambiente.

Por outro lado, encontra-se também violado o princípio específico em matéria do ambiente, do Desenvolvimento Sustentável, estabelecido também no n.º 2, do artigo 66.º da CRP, que obrigava à fundamentação ecológica da decisão de licenciamento estabelecendo a necessidade de ponderar os beneficios de natureza económica dos prejuízos de natureza ecológica.

Por último também se encontra violado o princípio do aproveitamento racional dos recursos estabelecido no artigo 66.º n.º 2, alínea d) da CRP, segundo o qual incumbia na decisão serem ponderados critérios de eficiencia ambiental de modo a racionalizar os recursos ambientais.

Considerando que os princípios de actividade administrativa em matéria do ambiente que decorrem do direito fundamental ao ambiente e por isso adquirem a natureza de garantias juridicas necessárias para a sua realização pelo que gozam do regime dos artigos 266.º e 18.º da CRP, nomeadamente da aplicabilidade imediata e vinculação de entidades publicas e privadas seguindo o mesmo autor citado e na supra indicada obra nas páginas 81 e seguintes.

Assim sendo, não tendo tais principios juridico-constitucionais sido tomados em conta na decisão de autorização é nula tal decisão por violação dos referidos principios constitucionais especificos do ambiente que vinculavam a administração directamente na decisão criando critérios decisórios autónomos que não foram tomados em linha de conta, bem como na sua vertente negativa como limite de actuação.

Dada a natureza de princípios fundamentais da ordem jurídica, constitucionalmente consagrados e dotados de aplicabilidade directa, a sanção correspondente a tal violação não pode deixar de ser a nulidade.

Continuando a seguir o entendimento do autor citado a páginas 82 da mesma obra citada, quer se considere tratar-se de nulidade ao abrigo do nº 1 do artigo 133º do código de Procedimento Administrativo por se entender que a mesma norma contém uma cláusula geral de nulidades por natureza e dada a gravidade de violação de princípios fundamentais constitucionalmente consagrados.

Quer se considere tratar-se de uma decisão de objecto legalmente impossível por desrespeito de tais princípios cabendo na previsão da alínea c), do nº 2, do artigo 133, do Código de Procedimento Administrativo por se considerar ser equiparável à ofensa do conteúdo essencial de um direito fundamental, uma vez que os princípios fundamentais em matéria de direito do ambiente decorrem do direito fundamental ao ambiente e constituem garantias jurídicas da sua realização. Assim a decisão de autorização é nula por violação de princípios ambientais fundamentais.

Pelo que, pelas nulidades apontadas pelo Ministério Público, a providência cautelar deve proceder quanto ao exclusivo aspecto da manifesta procedência da pretensão formulada no pedido principal, nos termos da alínea a) do artigo 120 do Código de Procedimento dos Tribunais Administrativo. Quanto à ponderação dos restantes fundamentos do pedido o Ministério Público requer as seguintes diligências instrutórias:

Apresenta como testemunhas todas as indicadas quer pelo Autor quer pela Ré;

Protesta juntar três Relatórios Periciais;

Requer a realização de prova pericial no sentido de determinar os benificiários do troço de sistema eléctrico objecto de providência cautelar bem como apurar que emissões são provocadas pela instalação de rede eléctrica na localidade Lugar do Ermo.

Os Procuradores da República às 16 horas de 7.12.07

Maria Isabel de Vasconcelos Cabral Fernandes Marques

Paula Cristina Osório Santos Neves

Rosa M. A.

André Lucas Pires Ribeiro Soares

Nuno Miguel dos Santos Marques

Luis Manuel Martins Damas

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