segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

O caso das licenças sem Estudo de impacto ambiental(resposta ao colega Hugo Santos Ferreira)

Antes de mais quero agradecer a participação do meu caro colega Hugo, que respondeu ao apelo e se pronunciou sobre este assunto, proporcionando pela primeira vez de uma forma mais directa, desde a existência do blog, uma interacção e uma discussão de ideias que é objectivo deste blog.

Contudo, quero tecer algumas críticas (construtivas) à sua ultima intervenção, em primeiro lugar quando refere “dizer que o expediente da suspensão da eficácia do acto, usa-se mais no âmbito dos concursos públicos, não me parece muito correcto, não fosse existirem normas como o Art. 112º n.º 2 alínea b) CPTA "admissão provisória em concursos e exames", ou mesmo a Secção II do Capítulo I do Título IV do CPTA "contencioso pré-contratual". Terá o legislador repetido-se vezes sem conta?”
A esta pergunta, terei de responder que o legislador não se repetiu, e precisamente por isso é que há uma fase em que existe a participação dos concorrentes, ou seja, a admissão a concurso, hipótese em que usamos o expediente do 112ºnº2 b) C.P.T.A(p.ex. nas hipóteses de ausência de publicidade do concurso, ou critérios de admissão a concurso viciados etc…) ,mas também há a fase posterior, em que há a adjudicação pelo ente público de uma das propostas sujeitas a concurso. Será pois nesta fase, que hipoteticamente se intentará uma acção pedindo a nulidade a título principal do acto administrativo (adjudicação), propondo uma acção a título cautelar de suspensão da eficácia do acto para obstar à celebração do contrato. Bem se vê assim, que uma coisa é a participação dos concorrentes , ou como dizem os ingleses a fase do “call for competition”, e outra é a fase posterior que é a adjudicação. Por este motivo, parece-me juridicamente incorrecta a afirmação citada pelo nosso colega, pois não cuidou a meu ver, de distinguir muito bem a diferença entre expedientes de defesa dos concorrentes para admissão a concurso (112ºnº2 b) C.P.T.A) e expedientes para impugnação e suspensão da eficácia do acto, sendo ambos “ferramentas diferentes” e utilizados em circunstâncias radicalmente distintas. Não vejo deste modo onde é que o legislador se terá “repetido vezes sem conta”.

Com todo o respeito, também discordo da afirmação do colega quando justifica a adopção do expediente da suspensão da eficácia do acto em prol da intimação para adopção de uma conduta, quando diz que “Pareceu ao grupo de trabalho, que comparando com a eventual violação de uma norma de direito administrativo, norma essa que não deixa de ser também muito importante e cuja violação é de facto gravosa, a violação daquelas normas constitucionais clamavam mais por uma protecção urgente e antecipatória da sentença ou acórdão, neste caso”, e ainda quando refere que “o grupo de trabalho entendeu que o pressuposto máximo e último das providências cautelares, que é a urgência, ou dito de outro modo a urgência em assegurar um efeito útil da sentença, não se encontrava tão manifesto na intimação para uma conduta, como se encontra na suspensão da eficácia.”
Em primeiro lugar, urgentes e antecipatórias são todas as providências cautelares patenteadas neste artigo 112º C.P.T.A, não existem providências mais urgentes do que outras, mas existem providências mais adequadas a cada caso concreto. Neste entendimento, a suspensão da eficácia do acto a título cautelar, tem como principal objectivo, e segundo se depreende da petição inicial, que o ente público cesse a actividade das instalações eléctricas, razão pela qual não entendo porque não havemos de propor directamente uma providência para este adoptar de imediato este “facere”, através da intimação para adopção de uma conduta positiva, que no caso será desligar as instalações. Afinal, não é este o resultado que o colega queria obter com a providência cautelar de suspensão do acto? Não será esta porventura, o meio que melhor protege os interesses constitucionais da população? Reparem também, que se há uma violação dos direitos constitucionais, e se estes clamam por uma “protecção mais urgente”, o expediente mais correcto (e abstraindo da questão da viabilidade desta suspensão, que já referi não fazer sentido de um ponto de vista procedimental e material, no caso concreto) será uma acção que obrigue a uma prestação de facto da administração (desligar as redes) , pois se o ente público fez “tábua rasa” da própria validade do acto de licenciamento, e de todos os vícios procedimentais e legais a este associados, poderá voltar a imiscuir-se dessa sua obrigação, ao passo que uma condenação efectiva a tomar determinada conduta, poderá proteger desde logo, mais eficazmente os interesses violados. Por este motivo, penso que o raciocínio é exactamente o inverso ao que o nosso colega Hugo elabora.

O nosso colega cita também, e rejeitando a tese de que o acto nestes termos é inexistente, o seguinte “quanto à questão da eficácia ou possível inexistência do acto de licenciamento, devidas à falta de uma formalidade (essencial), como seja a AIA, cabe dizer que a questão é sujeita, mais uma vez, a diversas interpretações e o próprio Prof. Doutor Vasco Pereira da Silva considera que há uma diferença entre actos nulos e actos inexistentes, na medida em que um acto só será inexistente se a falta dos elementos (ou formalidades) essenciais for muito grave”. Ora em primeiro lugar, efectivamente a ausência de estudo de impacto ambiental não é uma formalidade, é uma exigência material da licença que se encontra subtraída neste caso concreto, razão pela qual carece de eficácia como eu já referi. Além disso, e se lerem o livro “verde cor de direitos” nas páginas 163 a 165, vão se aperceber que o Professor Doutor VASCO PEREIRA DA SILVA refere literalmente que nestas hipóteses o acto é “inexistente”, não havendo a meu ver, margens para dúvidas de que este é um vício muito grave, sendo ainda um vício material (e não formal como refere o colega Hugo).

Ainda tenho a tecer algumas considerações relativamente à afirmação do colega, quando diz “Pergunto-me se pelo mesmo raciocínio de que este acto, em teoria, ineficaz não pode estar sujeito a uma providência cautelar de suspensão da eficácia do acto, então também este acto, em teoria, inexistente, não pode também ele estar sujeito a uma acção de impugnação do acto, porque não existe”.
Sobre o assunto, digo, que há actos nulos e eficazes e actos nulos e ineficazes como referi no anterior post, em que dei o exemplo de uma adjudicação num concurso, no qual as regras da imparcialidade eram violadas, aqui haveria eficácia externa do acto (adjudicação) 51ºn 1 C.P.T.A, mas o acto seria ferido de nulidade nos termos do 133º C.P.A. Outros casos haverá, como este julgamento, em que o acto de licenciamento, porque não foi precedido de estudo impacto ambiental, nem sequer chegou a produzir eficácia externa, não foi eficaz pois a existência do primeiro acto é condição de eficácia deste segundo, assim sendo inexistente.
Repare-se, que a análise do âmbito do 134ºnº1 C.P.A refere que “o acto nulo não chega a produzir quaisquer efeitos”, mas não refere que este “não exista”, e prova disso é o facto patenteado no artigo 134ºnº3 C.P.A que fala da “possibilidade de atribuição de certos efeitos jurídicos pelo simples decurso do tempo, a situações de facto decorrentes de actos nulos”. Assim, e a meu ver, esta ideia de “condição de existência” que o Prof. Doutor VASCO PEREIRA DA SILVA faz alusão, visa acima de tudo retirar qualquer tipo de efeito hipotético e eventual ao acto administrativo “logo à nascença”, quando elaborado sem o prévio estudo de impacto ambiental, protegendo-se de forma mais efectiva o ambiente, evitando que certas licenças sem a prévia estudo de avaliação, pudessem eventualmente “existir” e produzir efeitos num momento subsequente por aplicação do 134nº3 C.P.A, pois tinham eficácia externa nos termos do 51ºnº1 C.P.T.A, situação que deixa de acontecer na minha teorização.
Penso que só assim fará sentido entendermos o legislador, e será por ventura nesta linha de pensamento que poderemos obstar de forma mais rígida ás futuras violações em matéria ambiental, pois o estudo de impacto ambiental não é uma “folha em branco”, é um acto administrativo que visa assegurar a legitimidade material da subsequente licença, tendo em conta os interesses públicos e ambientais envolvidos. Também por este motivo, é que não pode ser considerada um acto instrumental, pois desempenha uma função nuclear nesta compatibilização e concretização do princípio do desenvolvimento sustentável. Se assim não for, o ente publico não faz os estudos de impacto ambiental, constrói as instalações ( como por exemplo bases nucleares, eléctricas ou hidráulicas) com base numa licença sem o prévio estudo de impacto ambiental, e já com a obra feita, vem invocar por aplicação do artigo 134ºnº3 C.P.A, que muito embora não tenha elaborado o estudo, a situação de facto decorrente do tempo inviabiliza uma actuação no sentido de remover aquela construção, muito embora esta tenha sido feita com uma licença ferida de nulidade.
Assim, faz sentido que o estudo de impacto ambiental seja um acto administrativo autónomo, mas mais do que isso, seja condição de eficácia, do acto de licenciamento. Pois, se conseguimos vislumbrar o ente publico “passar por cima” do estudo se este for considerado um acto instrumental, ou mesmo inconsequente relativamente ao segundo acto, o mesmo já não acontecerá no caso deste estudo ser um acto administrativo autónomo, e ser condição “sine qua non” da eficácia do segundo acto, situação em que este jamais poderá apelar ao 134ºnº3 C.P.A.

Por tudo o que referi, discordo peremptoriamente da posição do colega Hugo, quando refere que “dizer-se que um acto de licenciamento, sem a precedência de uma AIA e por isso ineficaz, não está sujeito a uma providência cautelar de suspensão da eficácia é no mínimo desproteger completamente os particulares de usar dos meios contenciosos ao seu dispor, contra as actuações da Administração Pública”, pois é precisamente essa eficácia que nunca existiu que tem de ser arguida, e nós como parte ao reconhecermos que o acto sem o estudo é eficaz, estamos a “abrir a porta” para uma possível invocação por parte do ente público da clausula aberta do 134ºnº3 C.P.A, que é precisamente o que se quer evitar.
Protegemos desta forma, melhor os nossos interesses como parte, protegemos melhor os interesses da população, protegemos melhor o interesse do ambiente que jamais pode cair nas “manhas do ente público”, que se poderia apoiar em clausulas abertas como o artigo 134ºnº3 C.P.A, para cometer ilegalidades.
Deixo a continuidade do apelo que fiz para posteriores intervenções sobre o assunto, e fico contente por saber que esta questão difícil de dissecar, já suscitou interesse em alguns colegas do mestrado.
Bibliografia:VASCO PEREIRA DA SILVA “Verde Cor de Direitos” pág. 163 a 165.
MARIO AROSO ALMEIDA “O Novo Regime do Processo Nos Tribunais Administrativos” pág. 288 a 294.

João Guerra

Um comentário:

Gisela Andrade disse...

qual o meio processual cautelar mais adequado?

caros ,

Ainda que o dia tenha apenas 24 horas, sendo uma realidade incontornável, não consigo deixar de me ater e manifestar relativamente a esta questão que deu azo a uma critica "construtiva".

Se após a primeira intervenção do João discordei da solução encontrada para o problema da suposta falta de Avaliação de impacte ambiental e de que forma isso inquina o acto, perante este segundo post sinto me na obrigação, ainda que repleta de dúvidas, de dar o meu contributo para o “dinamismo” do blog.

Não me pretendo alongar e por conseguinte não me vou debruçar sobre a questão dos embargos administrativos.


No que diz respeito ao Procedimento de AIA, quando um acto de licenciamento de uma actividade ou construção encontra-se sujeito a procedimento de Avaliação de Impacte Ambiental, a Declaração de Impacte Ambiental constitui um acto administrativo obrigatório no procedimento, sob pena de enfermar o acto de um vício de ilegalidade. Claro está, que a ausência de outras mais exigências legais poderão enfermar o acto como seja a não realização de consulta pública.


Assim, o procedimento administrativo de licenciamento, para além de outros actos instrumentais, como um parecer de entidades públicas no âmbito do Procedimento de Avaliação de Impacto Ambiental, comporta dois actos administrativos: a Declaração de Impacto Ambiental a proferir pelo Ministério do Ambiente e a atribuição da Licença pela entidade competente.

O primeiro acto é sem margem para dúvidas vinculativo não só em termos formais, e por formais entenda-se a sua existência, como também substantivos uma vez que não se pode atribuir uma licença quando a DIA tenha sido desfavorável.

No entanto, temos seguramente dois actos administrativos.
Assim, perante a ausência da DIA, o acto de licenciamento é ilegal, mas produz efeitos mais não seja que materiais (ou não foi o transporte de electricidade efectivamente realizado por aquelas linhas e se queixaram os seis habitantes de cefaleias severas?).
Admitir como entendi que admitiu o João Guerra em claro protesto ao sustentado pelo Hugo que a suspensão de eficácia não é o meio cautelar mais adequado, tendo por base o argumento de que o acto de licenciamento padece de vicio gravoso é no mínimo desprover de conteúdo o artigo 112 n.º2 alínea a).

Com efeito, o que se pretende suspender é o acto, que na realidade foi praticado, de Licença de instalação. É este acto que se pretende paralisar os seus efeitos, pois é o funcionamento das linhas instaladas que viola os direitos ou interesses dos autores, e é por existência de receio de que a pretensão perca utilidade na pendência do processo principal que se intenta uma providência cautelar de suspensão.

Com efeito, "a suspensão de eficácia de actos administrativos serve para proteger os interesses daqueles que, no processo principal, pretendam obter licenças que, anulando actos ilegais ou declarando a respectiva nulidade e inexistência, façam com que tudo permaneça como era antes de esses actos terem sido praticados "( Mario Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Almedina)

Pense-se a titulo exemplificativo, numa situação mais simples como seja a de uma licença de construção que padece de ilegalidade por desconformidade com o plano director municipal: não será um vício suficientemente gravoso? É uma mera formalidade? Não, não é mera formalidade mas sim condição para que a mesma seja atribuída e não restam duvidas que o expediente mais adequando seja a suspensão de eficácia sempre que um outro particular veja violado os seus direitos, que poderão ser fundamentais como o direito ao ambiente.

A providência cautelar de suspensão de eficácia permite impedir a execução de actos administrativos de conteúdo positivo, como é o caso em questão, articulados com processos principais de impugnação, dirigidos a obter a anulação ou declaração de nulidade desses actos.
Ora, em que se traduz mais a paralisação do transporte de electricidade nas linhas de alta tensão, permitido pela atribuição da licença que não apenas na suspensão de eficácia do acto de licenciamento?

Quanto à intimação para adopção ou abstenção de uma conduta contemplado no artigo 112.º n.º 2 alínea f), que corresponde a uma providência cautelar antecipatória, verificamos que o espírito da norma é diferente, visando principalmente acautelar relações jurídicas administrativas inter-privados, visto que o artigo menciona " (...) por parte da Administração ou de um particular".

Assim, este seria o mecanismo próprio se a Associação quisesse reagir contra a REN na ausência de acto de licenciamento, sendo este processo cautelar adjuvante do pedido principal de condenação do artigo 37.º n.º 3 CPTA: "quando sem fundamento em acto administrativo impugnável."
Ora, como o acto de licença, independentemente de saber se o mesmo padece de vício nulidade ou vicio inexistência, existiu, este mecanismo não é o processualmente mais adequado para acautelar a pretensão da Associação.

Seria porventura, caso apenas fosse legalmente exigida, para a instalação e funcionamento das linhas, a concessão atribuída à REN pelo Estado.

Por outro lado, e pretendendo-se intimar a Administração à adopção ou abstenção de comportamentos, esta providência surge como medida cautelar típica da acção de condenação à adopção ou abstenção de comportamentos mencionada no artigo 37 n.º 2 alínea c) (que se traduz numa tutela preventiva) ou condenação da Administração ao cumprimento de deveres de prestar, a que se refere o artigo 37.º n.º 2 alínea e).

Mais uma vez, em ambas as normas mencionadas, o pedido a titulo principal prende-se com a “…designadamente…não emissão de um acto quando seja provável a emissão de um acto lesivo” e “… não envolvam a emissão de um acto administrativo impugnável”, respectivamente”.

Face ao exposto, tendo existido como existiu um acto administrativo impugnável, o meio processual a titulo principal adequado é a impugnação do acto cumulada com o pedido de condenação da Administração à adopção das condutas necessárias ao restabelecimento de direitos ou interesses violados.

No meu entender, ancorado claro está numa interpretação da lei coadjuvada pela Doutrina e jurisprudência vigentes, o meio processual cautelar de intimação afigura-se para situações materialmente distintas, nas quais não houve emissão de um acto administrativo.

Com efeito, a providência cautelar vertida na alínea f) parece reconduzir-se, caso se pretenda intimar a Administração à adopção de condutas, a uma espécie de providência antecipatória com a relevante diferença que ao contrário desta última não se pretende no processo principal a emissão de um acto administrativo, mas tão somente de uma conduta, prestação, (…) que decorra de normas administrativas.

Acresce ao exposto, que o entendimento supra explanado é o que melhor se coaduna com o conceito de providência cautelar antecipatória.

Com a dedução de uma providência cautelar antecipatória, e nomeadamente a da intimação, pretende-se antecipar, a titulo provisório, a constituição de uma situação jurídica nova, diferente da existente à partida. Por exemplo, obrigar um certo órgão administrativo a pagar certo montante, a prestar ou abster-se de praticar certo facto.

Ora, no caso em apreço não se pretende uma situação nova, mas sim a situação existente antes da execução ou produção de efeitos do acto administrativo de licença. Pretende-se conservar a situação antes do acto administrativo em causa e não antecipar nada que não se tivesse já previamente constituído.

O direito ao ambiente e à qualidade de vida existiam plenamente antes da licença, não se pretendendo a constituição ou atribuição destes direitos mas sim a conservação dos mesmos.

Resta-me assim concluir que partilho da solução preconizada pelo Hugo, considerando que a providência cautelar conservatória afigura-se como um meio processual adequado, não vislumbrando como se possa, no caso em apreço, recorrer à situação do artigo 112.º n.º 2 alínea f) do CPTA, não todavia desconsiderando a posição defendida pelo João.