domingo, 9 de dezembro de 2007

Organismos geneticamente modificados (Cont.)


Caros Colegas,

Como prometi na semana passada, vou continuar a falar sobre a matéria em epígrafe.

O Decreto-Lei nº 72/2003, de 21 de Setembro, regula a libertação deliberada de organismos geneticamente modificados para qualquer fim diferente da colocação no mercado, bem como a colocação no mercado de produtos que os contenham ou por eles sejam constituídos (antigo 1º).

O Decreto-Lei nº 164/2004, de 3 de Julho, veio aditar o nº 3 ao artigo 26º e os artigos 15º-A, 26º-A e 38º-A ao atrás mencionado diploma, com o objectivo primordial de estabelecer medidas que visem a redução da presença acidental de organismos geneticamente modificados, incluindo medidas de coexistência entre culturas de espécies com origem em modificações genéticas e outras que não possuam esta origem.

Na sequência, foi publicado o Decreto-Lei nº 160/2005, de 21 de Setembro, que regula o cultivo de variedades geneticamente modificadas com o objectivo de assegurar a coexistência com as culturas convencionais e com o modo de produção biológico.

Para o caso concreto de Portugal, esta legislação era absolutamente essencial dado que não é possível restringir o cultivo de certas variedades por se ter demonstrado - diz o preâmbulo deste último acto legislativo - não serem nocivas e por inexistirem riscos para a saúde humana e para o ambiente, à luz dos conhecimentos actuais.

O diploma revela, assim, ter sido adoptada uma visão do princípio da prevenção que afasta a regra “in dubio pro natura” uma vez que não se exigiu a prova irrefutável da inexistência de riscos (Vasco Pereira da Silva, Verde Cor de Direito, págs. 69 e 70).

De acordo com um princípio de controlo integral, as medidas abrangem o processo de cultivo desde a aquisição das sementes até à entrega dos produtos vegetais (nº 2 do artigo 2º).

Em execução dos comandos da Constituição que impõem o envolvimento e participação no domínio do ambiente (nº 2 do artigo 66º, nº 1 do artigo 267º e nº 1 do artigo 268º), são estabelecidos direitos e deveres no quadro de relações jurídicas multilaterais que abrangem a Administração Pública, o agricultor que pretenda cultivar as variedades, as organizações de agricultores e os agricultores vizinhos (artigo 4º).

A esta relação multilateral são ainda aplicáveis as normas contidas no CPA, designadamente, por se poder verificar a existência de um procedimento que se inicia com a notificação prevista na alínea c) do nº 1 do artigo 4º.

Deve ainda ser realçado o artigo 14º deste diploma que determina a criação futura de um fundo de compensação para suportar danos derivados da contaminação acidental do cultivo de variedades geneticamente modificadas (norma, diga-se de passagem, redigida de forma que não prestigia o legislador).

Foi precisamente este artigo 14º que deu origem ao Decreto-Lei nº 387/2007, de 28 de Novembro.

O Fundo de Compensação, património sem personalidade jurídica, constituído por receitas afectas a determinado fim (Marcello Caetano, 10ª edição, Manual de Direito Administrativo, vol. I, págs. 187 e sgs. e 376), funcionará junto da Direcção Geral da Agricultura e do Desenvolvimento Rural (nº 1 do artigo 1º).

O diploma não regula apenas aspectos relacionados com a criação do Fundo, avançando com normas de direito substantivo com relevância directa na esfera jurídica dos particulares. Neste ponto é que, verdadeiramente, se torna interessante.

Desde logo, são beneficiários do Fundo, os agricultores em cujas explorações se produzam produtos não geneticamente modificados, que sofram contaminações acidentais superiores a 0,9% (artigo 7º).

Este limite de 0,9 % consta do aditamento do nº 3 ao artigo 26º do Decreto-Lei nº 72/2003, de 10 de Abril, acima referido.

As contaminações não acidentais (isto é, as que sejam determinadas por agricultor que não respeitou as regras de cultivo de variedades geneticamente modificadas) regem-se pelas regras da responsabilidade civil (nº 3 do artigo 8º). Sendo assim, o agricultor prejudicado deve socorrer-se dos artigos 483º e sgs. do Código Civil para justificar a sua pretensão.

Na minha opinião, a responsabilidade pode não ficar confinada ao agricultor mas abranger o próprio Estado (Decreto-Lei nº 48 051, de 21 de Novembro de 1967), se a contaminação provocada tiver origem em deficiente exercício das competências previstas no Decreto-Lei nº 160/2005, de 21 de Setembro, (em especial as do artigo 7º).

O valor da compensação também está definido no diploma: ele resulta da diferença de preço prevista na alínea f) do nº 1 do artigo 10º a que acrescem os custos referidos na alínea h) do mesmo preceito. Porém, há que não esquecer o limite global previsto no nº 1 do artigo 14º que pode determinar a diminuição do montante.

De uma forma muito absoluta, estabelece-se que a conduta do prejudicado, dolosa ou negligente, que tenha contribuído para a contaminação ou tenha originado a mesma excepciona o direito à compensação (nº 5 do artigo 12º).

Do mesmo modo, a conduta, dolosa ou negligente, do agricultor causador do dano origina um direito de regresso, caso o Estado pague compensações (nº 6 do artigo 12º).

A articulação destas normas com as normas da responsabilidade civil, especialmente nos casos em que os montantes existentes no Fundo são insuficientes para eliminar os danos e nos casos em que os danos, patrimoniais e não patrimoniais, não estejam cobertos pelas alíneas f) e g) do nº 1 do artigo 10º, merece um comentário.

Trata-se da aplicação do artigo 41º da LBA e do significado da declaração de compromisso prevista na alínea h) do nº 1 do artigo 10º.

No primeiro caso, pode o agricultor lesado demandar o agricultor proprietário da exploração por se considerar a actividade de cultivo de organismos geneticamente modificáveis especialmente perigosa?

Um argumento a favor da qualificação da actividade como especialmente perigosa, reside na circunstância do Decreto-Lei nº 160/2005, de 21 de Setembro, ter rodeado o cultivo destes bens de especiais cautelas com um controle minucioso de todos os passos existentes.

Acresce ainda que, os danos ecológicos são muitas vezes de detecção difícil pelo que a sua extensão apenas se verifica quando atinge proporções descomunais.

Se assim fosse, o agricultor lesante poderia ser confrontado com a aplicação daquela norma juntamente com o artigo 510º do C.C. (Vasco Pereira da Silva, Verde Cor de Direito, págs. 265 e sgs.).

Entendo, porém, que no actual quadro legal não se pode considerar a actividade como especialmente perigosa.

Na verdade, a introdução do cultivo foi precedida de estudos minuciosos quanto aos efeitos. A fazer fé no preâmbulo do Decreto-Lei nº 160/2005, de 21 de Setembro, houve estudos rigorosos quanto à nocividade das espécies e concluiu-se pela inexistência de riscos para a saúde humana e para o ambiente.

Fica-se, aliás, com a impressão que os procedimentos de controlo têm mais a ver com a tranquilidade do consumidor e da opinião pública do que com a actividade em si considerada.

Quanto à declaração de compromisso, qual o seu significado?

Significa que o agricultor lesado, ao declarar que não recorre a outro modo de compensação financeira, não pode, por isso, demandar o agricultor lesante mesmo nos casos em que os montantes do Fundo são insuficientes?

Ou, se celebrar contrato de seguro, não pode exigir da seguradora a diferença entre o que recebeu do Fundo e o montante efectivo do prejuízo?

A solução de exigir esta declaração de compromisso é, na minha opinião, infeliz na medida em que se fica sem saber qual a natureza e os efeitos deste documento.

Numa certa leitura, a alínea h) do nº 1 do artigo 10º viola nº 1 do artigo 62º e o nº 2 do artigo 18º da Constituição.

Teria sido mais avisado que se inserisse a declaração num quadro contratual previsto nos artigos 178º e sgs. do CPA, confinando o compromisso aos casos de duplo ressarcimento dos mesmos danos.


Álvaro de Castro

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