terça-feira, 18 de dezembro de 2007

Comentário final sobre o julgamento

Venho deste modo, e em jeito de conclusão do nosso caso simulado, propor de forma sucinta algumas considerações, que a meu ver os juízes terão de ponderar na decisão.
Em primeiro lugar, que a nossa ordem jurídica sustenta-se na Constituição da República Portuguesa de 1976, e como tal todos os actos administrativos e respectivos procedimentos, tem de estar de acordo com o que se exige de um Estado de direito, ou seja, baseados segundo o artigo 2º da C.R.P no “respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais”, e igual disposição encontramos especificamente no C.P.A no artigo 4º, quando se refere que os "órgãos administrativos devem prosseguir o interesse público no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos", sendo que nunca poderemos esquecer que os direitos fundamentais estão no topo desta “pirâmide” e são fundamento primário da existência de uma Constituição.
Neste caso, e embora exista um interesse público para a instalação destas instalações eléctricas, é necessário averiguar à luz dos direitos constitucionais, duas coisas, em primeiro lugar saber que tipo de direitos constitucionais estão em conflito ( conflitos de direitos) e por outro lado, saber qual será a solução que no caso concreto corresponderá a uma menor violação dos direitos constitucionais, sabendo de antemão que tem de existir uma “concordância prática” entre os direitos que vão ser acautelados com a instalação e os direitos que serão violados com esta, penso que é nesta sede que tudo se resolverá.
Será também imperioso, averiguar da questão do principio da proporcionalidade e da justiça artigos 5º C.P.A e 266º C.R.P, que terão que ser observados, e em conexão com este sabermos o que é ou não um “custo social excessivo”, para os benefícios que se vão obter com esta instalação.
Penso que será no âmbito dos direitos constitucionais, que este caso poderá e deverá ser solucionado, pois se ficou provado a legitimidade formal ( e apenas formal) deste licenciamento, provado fica também que os direitos mais elementares que sustentam o nosso Estado Social de Direito, ficam claramente coarctados se o tribunal contra esta não se opuser. Assim observamos, que a favor da instalação poderemos encontrar na nossa Constituição preferencialmente as seguintes disposições, o 81ºC.R.P que muito embora faça menção à importância da energia, e do seu fornecimento, não deixa de fazer referência à necessidade de assegurar uma “estratégia de desenvolvimento sustentável”, bem como “preservação dos recursos naturais e do equilíbrio ecológico”, mostrando claramente que a energia é uma importante incumbência do estado, mas está sempre “amarrado” ao respeito por outros limites, por ventura , limites que advêm do respeito por direitos fundamentais.
Há assim, uma configuração de um confronto entre direitos programáticos com direitos preceptivos, entre direitos que não são exequíveis por si mesmo (como por exemplo 81º m) C.R.P (“Adoptar uma política nacional de energia”) e direitos fundamentais como o direito à integridade física 25º C.R.P, e em último caso direito à vida artigo 26º C.R.P que são preceptivos e vinculam desde logo entidades públicas e privadas nos termos do artigo 18º C.R.P criando a responsabilização destas entidades pelas violações que façam neste domínio em consequência das suas acções, artigo 22ºC.R.P.
Contudo, a favor da não instalação destes cabos de alta tensão temos inúmeros argumentos, jurídico-constitucionais e jurisprudenciais, “dando de barato” a questão procedimental e formal, que quanto a mim, e muito embora tenha sido duramente discutida em julgamento, não constitui o cerne da questão. Aliás, tanto foi assim, que os advogados que defenderam em julgamento a posição da REN, mais não fizeram do que tentar alegar a validade do procedimento formal, desconsiderando por completo a questão material, que é bem mais relevante. Também não poderá ser esquecido pelos juízes, que os artigos 64º direito à saúde, os artigos 65º direito a habitação, 66º ambiente e qualidade de vida, e ainda o prioritário artigo 9º C.R.P alíneas b) d) e e) fazem menção expressa a estes interesses, quer do respeito pelos direitos fundamentais, quer pelos direitos ambientais e ecológicos.
Relevante será também, chamar à colação a problemática do tipo de instalação de fornecimento de energia que foi licenciado no caso em análise, é que hoje em dia já há técnicas disponíveis para instalar estes cabos de alta tensão por via subterrânea, abrindo a porta a uma minimização dos danos do ambiente e da salubridade humana, que da forma como foi licenciado não se protege. O juiz terá que ter este facto em conta, até porque só assim se respeitará o principio da precaução, principio da adequação, e o principio do desenvolvimento sustentável, na medida em que para acautelar aquele interesse do fornecimento de energia, haverá meios ao alcance da administração para evitar que danos superiores se criem, em consequência daquela actividade. É que vendo friamente, que sentido faz a administração acautelar o interesse (fornecimento de energia) se depois compromete dramaticamente o interesse (saúde, ambiente, habitação)?
Esta questão, é habilmente contornada pelos mais diversificados e improcedentes argumentos elaborados pelos advogados da REN, que nas suas alegações finais proferidas pelo advogado Carlos Vaz de Almeida referiu que “ não ficou provado o nexo causal entre a actividade das instalações e os danos ao ambiente e à saúde”. Permitam-me tecer algumas considerações relativamente a esta afirmação, que em primeiro lugar, o nexo causal em matéria de responsabilidade ambiental não tem de ser provado com o mesmo rigor que é efectuado nas restantes áreas da responsabilidade civil, aliás segundo aprendemos nas aulas, a teoria do nexo de causalidade não tem a mesma configuração no âmbito da responsabilidade civil em domínio ambiental. Assim, quando toca a violações de direitos ambientais, é suficiente para a responsabilização do ente público, provar que aquele facto ilícito é capaz de em condições objectivas produzir o resultado danoso que alcançou. O Prof. Doutor VASCO PEREIRA DA SILVA, falava nas aulas a este respeito do caso da doença “das vacas loucas”, em que não se tem de provar qual a ração em concreto que despoletou aquela doença nas vacas, mas apenas provar que aquela forma de alimentar as vacas (nomeadamente alimentando-as com carne de outras vacas, fazendo com que estas passassem a ser canibais) foi suficiente para produzir, por via da observação cientifica, aquele resultado danoso, igual situação se aplicando naqueles humanos que contraíram a doença depois de terem ingerido vacas contaminadas.
Ora, no nosso caso, igual raciocínio terá de ser feito, pois se ficou cientificamente provado por estudos de conceituadas Universidades mundiais, que a exposição a estes postes de alta tensão, é idóneo a produzir uma aumento das probabilidades de contrair cancro, e de afectar gravemente o ecossistema (tal como foi referido pelas testemunhas que vivem no Lugar do Ermo), então teremos que responsabilizar as entidades que legalizaram aquela instalação, impugnando o acto de licenciamento com base na violação de direitos fundamentais 133º d) C.P.A, mas ainda com base na violação objectiva do ambiente.
Dir-me-ão provavelmente alguns colegas, que no momento da elaboração do acto (licenciamento) não há nenhuma violação dos direitos fundamentais, o procedimento foi formalmente legal, e como tal não poderemos invocar o 133º d) C.P.A, pois a existir, é uma ilegalidade superveniente do acto, porque o dano dos direitos fundamentais situam-se no plano da execução da actividade licenciada, posterior à emissão do acto que a habilitou, e não no acto em si.
Contesto esta visão, e muito embora a considere idónea, não consegue “descalçar a bota” que se prende com o facto de ser exigido um estudo de impacto ambiental prévio, pois se este é condição de existência do acto (licenciamento), e se neste estudo prévio não são observados desde logo, as consequências nefastas para a saúde e ambiente que posteriormente se verificam , há uma violação dos direitos fundamentais na elaboração deste acto (estudo impacto ambiental). Cria-se assim um “efeito dominó”, pois não pomos em causa que nas condições descritas, o acto estudo de impacto ambiental é nulo, e por igual ordem de razões o licenciamento também o será, deixando de haver uma nulidade superveniente, mas sim existindo uma nulidade do acto (licenciamento) logo à nascença, podendo assim cair “nas malhas” do artigo 133º d) C.P.A.
Para terminar, faço apelo à consciência geral que se vive na comunidade jurídica, quer no âmbito da magistratura, quer no âmbito da advocacia, de que a Constituição e as suas disposições normativas “são chão que já deu uva”. Este espírito, que é comum e cada vez mais geral, desconsidera os direitos constitucionais referindo que são sempre invocados por todas os motivos, várias vezes sem razão e sem apoio jurídico e factual.
Considero que, alguma razão terão quando assim pensam, mas que nunca em caso algum se poderá fazer tábua rasa destes mesmo direitos, quando forem fortemente violados como o são no caso concreto, pois a nossa constituição não é nominal ( uma mera folha em branco nas palavras de LASSALE) mas sim normativa e efectiva, sendo parâmetro de validade da restante legislação, bem como parâmetro de validade da actuação da administração que a esta está subjugada por um principio de legalidade.
Termino esta minha intervenção sucinta, e muito rápida (pois ainda lançaremos as nossas alegações de direito), relembrando que a jurisprudência do Supremo também “joga a favor” da defesa dos direitos da população do Lugar do Ermo, pois em Outubro de 2007, o Supremo ordenou a imediata desactivação das linhas de alta tensão da REN na linha de Sintra a Trajouce, com base na violação dos direitos ambientais e de saúde da população. Fica desta forma claro, que se estivéssemos num julgamento real, jamais o tribunal de 1ºinstância iria pôr em causa a jurisprudência firmemente elaborada pelo Supremo, deixando-me a mim em particular (como advogado da Associação do Lugar do Ermo) com a clara convicção por motivos jurídico-constitucionais e jurisprudenciais, que mesmo que não haja provimento em sede de 1ºinstancia, a acção seria julgada procedente em sede de recurso.


João Guerra

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