domingo, 4 de novembro de 2007

Há um direito subjectivo privado do ambiente?

Caros Colegas,

No livro “O Meu Caderno Verde – Trabalhos Práticos de Direito do Ambiente” (Professor Vasco Pereira da Silva e outros ed. aafdl) são dados alguns exemplos de jurisprudência ambiental que permitem a partilha convosco de algumas dúvidas.

É o caso da sentença do Tribunal Judicial de Círculo de Santa Maria da Feira de 4 de Abril de 1997 que afirma, a certa altura, o seguinte (pág. 317):

“Estando em causa o direito subjectivo dos A.A. a um ambiente sadio, de modo a assegurar a sua qualidade de vida……”

Ora, a questão é a seguinte: O direito do ambiente vale por si próprio como um direito subjectivo privado, ou só pode ser invocado, nas relações entre particulares, no quadro de outros direitos, designadamente, dos direitos reais ou dos direitos de personalidade (cfr. o artigo 70º do C.C.), sejam estes últimos considerados ou não direitos subjectivos (A. Varela, Das Obrigações…, 10ª ed. pág. 534)?

A sentença é interessante porque convoca os direitos de personalidade, os direitos reais e o direito do ambiente para resolver um litígio entre particulares.

Em breve síntese: Os demandantes habitavam perto de uma serração cuja laboração provocava ruídos e emissão de pó. Em consequência de tais emissões e ruídos os demandantes sofriam diversos danos na propriedade e na saúde.

Se olharmos os factos provados verificamos que o ruído produzido pela serração assume relevância por, designadamente: não permitir ou dificultar a conversa, a audição de música ou a visão de televisão (nº 9); ser contínuo, cavo e, às vezes, estridente, aumentando de frequência sonora e de intensidade (nº 10); provocar vibrações em objectos (nº 11); impedir a abertura de janelas (nº 12).

Por outro lado, a emissão de pó cobre o terreno dos demandantes e impede a normal frutificação (nº 15).

A laboração da serração em tais condições provocou danos avultados na saúde dos habitantes do prédio (nºs 16 a 18).

Não tenho dúvidas de que, no caso concreto, existem danos que resultam da ofensa de direitos de personalidade e da propriedade.

Tenho as maiores dúvidas sobre a violação de um direito subjectivo autónomo do ambiente.

Na verdade, não vejo, na matéria de facto provada, que exista qualquer bem jurídico do ambiente, na esfera jurídica dos demandantes, a ser atingido. Claro que existem actuações negativas no domínio ambiental, mas essas actuações só ganham dimensão na medida em que ofendem direitos de personalidade ou de propriedade.

Por isso, na parte da sentença dedicada ao direito do ambiente, o Tribunal afirma que a actuação dos demandados provocou danos na saúde, no repouso e na propriedade (páginas 316 e 317), invocando os mesmos factos que já tinha referido aquando da violação dos direitos de personalidade e de propriedade.

A propósito dos direitos de personalidade, são mencionados os factos 7º, 9º, 10º, 16º, 17º e 18º (página 308), a propósito do direito de propriedade são mencionados os factos 8º, 9º, 10º, 11º, e 13º a 15º (página 311), e a propósito do direito do ambiente são mencionados os mesmos factos, com excepção do nº 12 (página 316).

Todavia, a relevância jurídica do facto provado nº 12 (impossibilidade de abertura da janela sem receber os ruídos) só faz sentido se colocada no plano dos direitos de personalidade referidos no artigo 70º do Código Civil. Ou, dito de outro modo, este facto seria insuficiente para, ancorado no “direito subjectivo do ambiente”, permitir a demanda dos proprietários da serração.

Em suma, não estou de acordo com o que a sentença diz sobre o direito do ambiente, subjectivo e privado dos A.A., embora concorde com uma exigente compreensão dos direitos de personalidade e de propriedade à luz das específicas normas de incidência ambiental.

Álvaro de Castro

Um comentário:

Gisela Andrade disse...

Caro colega,

O caso sobre o qual se debruçou é bastante interessante e paradigmático da questão polémica de reconhecer o direito ao ambiente como um direito subjectivo.

Com efeito, o que está em causa é a consideração ou não do direito ao ambiente como tendo uma dupla susceptibilidade de apropriação: apenas pela colectividade (direito ao ambiente como um direito de todos os cidadão, susceptível de tutela objectiva); ou também como um direito subjectivo, individual, no qual o bem susceptível de tutela subjectiva é o bem de "fruição ambiental".

Ora, apenas nesta última "modalidade" poderá o particular reagir directamente contra actuações ilícitas de outro particular invocando a violação do seu direito ao ambiente, como o fez no caso em apreço.

Partilho da sua "inquietação": o direito subjectivo parece não ser mais do que um conjunto de outros direitos que concretamente respeitados permitem a cada cidadão viver num ambiente sadio, com qualidade de vida.

A reconhecer a existência de um direito subjectivo à fruição ambiental, creio que o conteúdo deste direito é concretizável por recondução a outros direitos.

Mas será que esta concretização de conteúdo por indirectamente determinável significa que o direito ao ambiente não é um verdadeiro direito subjectivo?

Por exemplo, o direito de liberdade de imprensa consagrado constitucionalmente no artigo 38.º é um direito fundamental (direito liberdade e garantia) autónomo, mas que necessariamente se reconduz e concretiza pelo direito à liberdade de expressão.

Assim, como escreve José Eduardo Figueiredo Dias, in «Direito Constitucional e Administrativo do Ambiente», CADERNOS CEDÖUA, Almedina, págs. 15 e ss., o direito fundamental ao ambiente é, na conformação dada no art. 2º da Lei de Bases do Ambiente, aprovada pela Lei n.º 11/87, de 7 de Abril, assumido como um direito subjectivo de qualquer cidadão, individualmente considerado, entendido como direito da personalidade humana, autónomo, tutelado directa e imediatamente, e não apenas como meio de efectivar outros direitos com ele relacionados.