quarta-feira, 14 de novembro de 2007

Análise do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 7/12/95, a responsabilidade civil administrativa no dominio do ambiente. A questão da acção popular

Caros Colegas
Análise do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7/12/1995, na questão relativa á
competência do tribunal para dirimir os casos da responsabilidade civil da
administração, em especial no âmbito do ambiente. O problema da lei 83/95 da acção popular.


O acórdão em análise, trata de uma questão que é muito interessante, que se prende com a competência para dirimir os casos que julguem a responsabilidade civil da administração em matéria do ambiente.
O presente acórdão, diz respeito a uma situação ocorrida no Município de Palmela, em que um conjunto de cidadãos ai residentes, intentou uma acção contra a Câmara por esta ter licenciado e permitido a abertura de uma vala a céu aberto entre as moradias dos autores, com destruição de um caminho público e de uma linha de águas pluviais. Os autores pediram com base no artigo 40nº4 lei de bases 11/87 a cessação das causas de violação dos seus direitos, que passará a meu ver, pela nulidade da licença com base no artigo 133ºnº2 d) C.P.A na medida em que esta licença ofende o conteúdo de um direito fundamental, e dará origem à consequente reconstituição natural da situação anterior (retirada da vala a céu aberto) com origem numa providência cautelar ou mesmo num processo de intimação sobre a administração para adopção de conduta positiva, ou seja, cobertura e remoção da vala. Haverá lugar a uma indemnização com base nos prejuízos causados no domínio do ambiente de vida humana, sadio e ecologicamente equilibrado, e também com base na violação de um direito a uma habitação em condições de higiene e conforto, bem estar físico e mental. Em relação a esta matéria falarei mais a frente, pois diz respeito à lei actual de acção popular, e também da responsabilidade civil da administração no domínio do ambiente, sob a qual tecerei algumas críticas.
Nesta petição poderemos observar dois pedidos, por um lado a reconstituição natural da situação anterior, e um pedido cumulativo de indemnização à Câmara pelos prejuízos causados, sendo que relativamente ao primeiro pedido entende FREITAS DO AMARAL que por um “ principio da independência da administração activa perante os tribunais” não devem ter lugar no domínio da responsabilidade ambiental da administração. Esta tese contrasta a tese do Prof. Doutor VASCO PEREIRA DA SILVA, que entende que segundo o artigo 48ºnº1 e nº3 da lei de bases do ambiente se prevêem as duas situações, ou seja, reconstituição natural e indemnização nestas hipóteses de responsabilidade civil da administração em sede do ambiente.
Não irei analisar as questões de fundo sobre o regime substantivo deste caso, mas falarei aqui um pouco sobre o regime da acção popular que a meu ver poderá ter lugar, bem como a questão da competência jurisdicional que a este caso assiste.
Esta acção foi intentada num tribunal comum de 1ºinstancia, e este após contestação da Câmara , absolveu o Réu com base numa excepção de incompetência em razão da matéria, por se estar no domínio de “actos de gestão pública”, pelo que o litígio teria de ser julgado num tribunal administrativo e não comum.
Não estando satisfeitos com a decisão, recorreram os Autores para o tribunal da relação de Évora, o qual veio dar provimento ao recurso, decidindo que os tribunais comuns, são competentes para julgarem a causa ao abrigo do artº 40º-4 da Lei 11/87, que no seu entender terá revogado nessa parte o artº 51º - 1-h) do Estatuto dos Tribunais administrativos e Fiscais – ETAF.
Perante tal contraditoriedade, recorreu o Réu ( a Câmara) da decisão para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo este adoptado uma decisão conforme ao julgado em 1ª instância, decidindo que os tribunais comuns não tem competência para dirimir casos de responsabilidade civil da administração, quando esta advêm do uso de poderes de “gestão pública”, pois essa competência só poderia existir se estivéssemos no domínio de actos de “gestão privada” (ius civile), o que entendeu não ser o caso concreto.
O acórdão em apreço, cita autores como FREITAS DO AMARAL e JORGE MIRANDA, que com base nos artigos 211º, 213 nº1 , artigo 214ºnº1 e 214ºnº3 da C.R.P, referem que “os tribunais administrativos são agora os tribunais ordinários da justiça administrativa. A letra do preceito parece não deixar margem para excepções, no sentido de consentir que estes tribunais possam julgar outras questões ou que certas questões de natureza administrativa possam ser atribuídas a outros tribunais”.
Também é feita aqui menção ao sistema da Europa continental em que Portugal está inserido, sendo que chamam à colação a questão da autonomia do poder executivo relativamente aos tribunais comuns, como refere FREITAS DO AMARAL “Os tribunais (administrativos) só podem anular os actos feridos de ilegalidade, não podendo declarar as consequências dessa anulação nem proibir a administração de proceder de determinada maneira, nem condená-la a tomar certa decisão ou a adoptar certo comportamento” diremos que neste contexto, o que está em causa é o assegurar a separação clara entre a actuação jurisdicional comum sobre a actividade administrativa, e a clara imposição da ideia de que este controle só poder ser exercido por tribunais especializados administrativos, pois só a estes é que de direito, é conferido esse poder. Sistema contrário ao nosso, é historicamente o sistema administrativo anglo-saxónico, que como cita a Prof. Doutora MARIA JOÃO ESTORNINHO é um sistema “moldado sob a influência de DICEY, o qual partia de dois princípios fundamentais, o principio da soberania do Parlamento e o principio da rule of law, defendendo a incompatibilidade entre a common law, entendida como sinónimo de igualdade, equilíbrio e segurança jurídica , e o direito administrativo de inspiração francesa, conotado com privilégios e imunidades da Administração”, aqui sim, vigora um sistema em que não há tribunais especializados e em que todos os litígios que advêm do “due exercise” da administração são resolvidos nos tribunais comuns (high court of justice e county courts).
Mas uma situação revestiu-se de especial importância neste acórdão, foi precisamente o critério que serviu para alegar a incompetência do tribunal da comarca para a resolução do litígio, sendo que em sede de recurso o Supremo referiu que quando a administração actuasse no uso do seu poder administrativo, e portanto revestida de “ius imperi” nos “actos de gestão publica”, teríamos de concluir que a competência para julgar sobre a responsabilidade civil da administração, seria conferida unicamente aos tribunais administrativos e não os comuns. Sobre esta temática o Prof. Doutor VASCO PEREIRA DA SILVA, fala de numa “dualidade” de competência entre os tribunais administrativos e judiciais comuns em sede responsabilidade civil da administração, que contribui para a “fragmentação”deste regime, pois neste âmbito tanto podem ser intentadas acções de responsabilização cível da administração nos tribunais comuns, como nos administrativos, sendo que a “natureza do acto em causa” (gestão publica ou privada) é que vai determinar qual o tribunal competente. Esta situação não se verifica em países como a Alemanha, Reino Unido e Estados Unidos da América, em que existe uma unidade de jurisdição no que toca a esta matéria, parecendo pois condenável, o critério adoptado pela nossa lei e jurisprudência, que para saber qual a jurisdição competente para dirimir as questões de responsabilidade civil administrativa, averiguam se o acto causador desta, foi feito no uso de poderes de gestão publica ou privada, se forem feitos no âmbito dos primeiros, os tribunais competentes serão os administrativos, se forem no âmbito dos segundos os tribunais com competência serão os comuns.
O Prof. Doutor VASCO PEREIRA DA SILVA ensina que, na administração actual do Estado pós-social já não faz sentido separarmos em “compartimentos estanques” o que são “actos de gestão publica” de “actos de gestão privada”, dando como sintoma o facto de inúmeras actividades no seio da administração se enquadrarem no domínio das “actuações técnicas” que já não caiem no domínio da gestão pública propriamente dita, mas também não são consideradas “de per si” actuações de gestão privada, pelo que a fronteira tende a esbater-se numa nomenclatura administrativa moderna, em que este tipo de actuações é cada vez mais frequente.
Parece assim, e a meu ver, isento de sentido prático as palavras de FREITAS DO AMARAL que refere que “sempre que a Administração se dispa do seu "jus imperii" e pratique actos de gestão privada, utilizando meios de direito privado, será tratada em pé de igualdade com os cidadãos nos tribunais comuns”, pelo que fará sentido e seguindo a posição do Prof .Doutor VASCO PEREIRA DA SILVA , compreender a administração actual, na sua actuação multilateral, infra-estrutural e multifacetada, em constante mutação, no “pronto a vestir” de que se abriga em detrimento da sua ultrapassada “farda única” debruada a pó e odores a naftalina. Entende igualmente este autor que a questão “sub judice” deve ser resolvida sob a alçada dos tribunais administrativos e não dos tribunais comuns, alcançando desta forma o mesmo resultado que atinge o citado acórdão e a própria lei, mas com premissas manifestamente diferentes, considerando uma incoerência e “ilogicidade” o critério da distinção entre actos de gestão publica, e actos de gestão privada.
Grande parte da doutrina também se debruçou sobre este problema, como por exemplo MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA que cita numa das suas obras que "A tutela do direito ao ambiente por um particular que se considera afectado ou lesado por um acto ou uma conduta da administração pública segue, sem quaisquer desvios, a regulamentação geral do contencioso administrativo”, ou mesmo COLAÇO ANTUNES que escreve "Assim, não nos parece correcto que a Lei 11/87 de 7-4 (Lei de Bases do Ambiente) no seu artigo 45º-1, considere que o conhecimento das acções em matéria de ambiente seja competência dos tribunais comuns", sendo que igual entendimento tem SOVERAL MARTINS que escreve "Os tribunais comuns de 1ª instância são, entre nós, os tribunais de comarca, os quais deterão a competência genérica para compor a conflitualidade ambiental. Simplesmente, esta competência genérica dos tribunais da comarca restringe-se ao julgamento das questões cíveis ambientais. Com efeito, no campo criminal, contravencional e contraordenativo a competência poderá ter de ser atribuída a tribunais de competência especializada e no campo do contencioso administrativo aos tribunais administrativos."
Esta ideia de “fragmentação”, também se deve essencialmente a um regime jurídico em que o legislador distingue, a responsabilidade civil da administração e a responsabilidade civil dos particulares , mas sem sequer saber tratar muito bem desta distinção, e por outro lado há a existência de uma série de diplomas legislativos, como o D.L nº48051, a Lei de bases do ambiente, Código civil, bem como a Lei de acção popular que não contribuem em nada para a “unicidade” e coerência legal nesta temática.
Contudo, e muito embora a reforma do contencioso aponte para no futuro, haver uma unidade do regime jurídico aplicável a questões da responsabilidade civil da administração em matéria do ambiente, teremos de por enquanto “dar o braço a torcer”, e considerar vigente o regime do D.L nº48051, da Lei de bases do ambiente, do Código civil e da Lei de acção popular mantendo esta imperfeita distinção criteriosa e premente de conflitos doutrinais e jurídicos.


Questão da acção popular:

Neste caso, e no que diz respeito à acção de responsabilização cível da administração em matéria do ambiente, poderemos dizer que há a possibilidade de uma acção popular com base na lei nº º83/95, que segundo o Prof. Doutor VASCO PEREIRA DA SILVA revela mais um sintoma dos “traumas de infância” a que o direito administrativo sempre foi sujeito. Na verdade, e retirando-se de algumas afirmações de RUI MACHETE, que esteve no projecto desta lei, é nos dada a ideia que foi uma lei claramente “feita em cima dos joelhos”, e que trouxe inúmeras imperfeições de difícil concretização jurídica, à luz do nosso direito.
Em primeiro lugar, houve várias confusões no elemento literal dos preceitos, pois no artigo 22º nº1 e 3 faz-se apelo a uma indemnização quando estiverem em causa “interesses individuais”, o que não fará qualquer sentido tendo em conta que estamos perante uma acção popular, (tal como se retira da epigrafe deste diploma) o que em nada contribui para uma clarificação do regime do artigo 52ºnº3 C.R.P, que confunde tutela subjectiva, que é individual e portanto prevista no artigo 20º e 268ºnº4 C.R.P, com a tutela objectiva que é garantida através da a acção popular.
Confusão também no âmbito da característica e função da indemnização, na medida em que o 22ºnº2 fala de uma indemnização “fixada globalmente”, o que deixa uma certa dúvida quanto à natureza da indemnização em causa, pois em Portugal esta tem uma função meramente ressarcitória e não sancionatória, típica dos sistemas anglo-saxónicos como nos dá a entender. Ainda relacionado com este problema, não se entende a favor de quem é que reverte a indemnização, pois nestes casos de acções populares em defesa do interesse público, não fará sentido a atribuição deste montante ao conjunto de cidadãos que propôs a acção, se bem que no meu ponto de vista não haja um “enriquecimento”, pois o montante foi fixado para ressarcir danos que são de todos e que todos sofreram, nem haverá (como me parece lógico) um enriquecimento sem causa à luz do direito civil. No entanto, estou certo de que não será a via mais adequada para a protecção do interesse público e em concreto do ambiente, também nessa linha e seguindo o Prof. VASCO PEREIRA DA SILVA, fará muito mais sentido que o montante ressarcido reverta a favor de entidades que assegurem o ambiente, como por exemplo o fundo para protecção ecológica.
O artigo 23º trata da responsabilidade objectiva da administração, ou seja, daquele tipo de responsabilidade que prescinde do elemento da culpa para poder ser efectivada, sendo que no entender do mesmo autor, não acrescenta nada aos anteriores diplomas que sobre o tema se debruçaram , antes vem criar algumas diferenças terminológicas e substanciais que suscitam ainda mais duvidas. Sinal deste mesmo problema, é o facto do artigo 23º só falar em “indemnização” e não falar ao contrário da lei de bases do ambiente em “reconstituição natural”, o que não deixa de ser estranho, e talvez seja o fundamento para que FREITAS DO AMARAL considere que esta não exista no domínio da responsabilidade civil ambiental da administração, ao contrário da tese do Prof. Doutor VASCO PEREIRA DA SILVA, como eu já referi.
Assim concluo, que a questão da acção popular e da consequente responsabilidade civil administrativa no domínio do ambiente, esteve desde sempre ancorada a uma grande imperfeição legislativa, que criou indeterminações no seu regime, sendo que a lei nº83/95 não acrescentou nada de novo, contribuindo para uma “diarreia legislativa” que suscitou ainda mais dúvidas. Contudo, penso que se aplicará ao caso, e enquanto estiver em vigor, a lei nº83/95 e o artigo 52º C.R.P ainda que imperfeitas.
No litígio em apreço, ainda poderia haver lugar ao uso dos expedientes que o C.P.A e o C.P.T.A nos oferecem, nomeadamente quanto á questão da declaração de nulidade do acto (licença), e muito embora a lei 83/95 não preveja a possibilidade de reconstituição natural, poderemos sempre usar o artigo 48ºnº1 e nº3 da lei de bases do ambiente, bem como da intimação para adopção de uma conduta positiva da administração para protecção de direitos legalmente protegidos dos cidadãos (obrigando a administração a fechar a vala e procedendo-se a uma verdadeira reposição no “status quo ante”), ou mesmo com o recurso a uma providência cautelar.
Já aqui falei, da ausência de unidade do regime jurídico que se faz sentir nesta matéria, mas será importante dizer que nesta situação, e na minha humilde opinião, esse facto contribui para a possibilidade de uma de duas soluções, 1) ou o pedido de uma indemnização por lesão objectiva dos bens ambientais através de uma acção popular (sem saber cuidar muito bem para quem o montante reverterá), 2) ou mesmo uma indemnização com base na tutela jurídico-subjectiva recorrendo ao artigo 22ºnº1 da lei 83/95, situação que já aqui foi criticada.
Perante este problema, e da ambiguidade que esta lei trouxe, entendemos que as soluções têm de ser dadas por vários actores. Em primeiro lugar, pelo legislador, revogando e fazendo um novo diploma da lei de acção popular, ou alterando-o com as finalidades que já aqui debati. Em segundo lugar, a jurisprudência terá também um importante papel, interpretando a lei à luz do espírito do legislador, e não com base numa interpretação literal destes preceitos normativos, sob pena de continuarmos neste “espiral” sem aparente resolução. E por último, a importância da doutrina, que informa a jurisprudência e o próprio legislador, das deficiências que a lei contem, e que poderá ser a “chave” para a correcção definitiva desta temática (em especial da lei 83/95).


Bibliografia:
1) Prof.Doutor VASCO PEREIRA DA SILVA “Verde Cor De Direito” pág.248 a 264, e 269 a 275.
2) SOVERAL MARTINS "Ambiente a Associações de Defesa" Centelha, pág. 83.
3) COLAÇO ANTUNES “Textos sobre Ambiente do CEJ, 1994” pág.98
comunicações apresentadas de 17 a 28 de Maio de 1993), escreve (pág. 417).
4) Prof. Doutora MARIA JOÃO ESTORNINHO “Direito Europeu dos Contratos Públicos um Olhar Português” Parte II Capitulo 3º.
Sites visitados: www.google.com e www.dgsi-pt

João Guerra

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