segunda-feira, 15 de outubro de 2007

Interpretação do Artigo 1346.º do Código Civil

Caros Colegas:

Depois de analisar a questão que nos foi colocada pelo Colega Álvaro de Castro, eis as minhas conclusões:

Quanto ao primeiro problema de interpretação, relativo ao alcance expressão ‘prédio vizinho’ constante do artigo 1347.º do Código Civil, não me parece razoável que seja restringido ao ponto de apenas incluir os prédios contíguos. Afinal, no ordenamento do território que hoje existe, não é de todo necessário que um prédio seja contíguo para que se verifiquem os efeitos indesejáveis que a norma pretende acautelar, ou seja, a emissão de fumo, fuligem, vapores, cheiros, calor ou ruídos, bem como a produção de trepidações e outros quaisquer factores semelhantes, de tal forma que importem um prejuízo substancial para o uso do imóvel, ou, caso não resultem da utilização normal do prédio de que emanam.
Neste sentido, o Acórdão do STJ de 16-10-90: Quando a lei se refere a prédio vizinho não se pretende que seja contíguo, mas que se situe em proximidade suficiente para ser afectado pelas emissões de cheiros e ruídos.
Este entendimento torna-se a meu ver mais evidente se tivermos em conta que o direito ao repouso e ao sossego tem assento constitucional. De facto, a Constituição da República, dando acolhimento e em consonância com o preceituado na Declaração Universal dos Direitos do Homem (art. 24º) e na Convenção Europeia dos Direitos do Homem (art. 8º), determina que a integridade moral e física das pessoas é inviolável (art. 25º, nº 1) e que todos têm direito a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado (art. 66º, nº 1).Também, por sua vez, o nº 1 do art. 70º Código Civil preconiza que a lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua integridade física ou moral. O repouso e o sossego que cada pessoa necessita de desfrutar no seu lar para se retemperar do desgaste físico e anímico que a vida no seu dia a dia provoca no ser humano é algo de essencial a uma vida saudável, equilibrada e física e mentalmente sadia. O direito ao repouso, ao sossego e ao sono são uma emanação da consagração constitucional do direito à integridade física e moral da pessoa humana e a um ambiente de vida sadio, constituindo, por isso, direitos de personalidade e com assento constitucional entre os Direitos e Deveres Fundamentais. E a nossa lei fundamental concede uma maior protecção jurídica a estes direitos do que aos direitos de índole económica, social e cultural, havendo entre eles uma ordem decrescente de valoração. Ou seja, mesmo no caso de uma colisão de direitos, em que de um lado esteja um direito económico e do outro o direito ao repouso, dada a natureza de direito fundamental deste último, a sua protecção teria prevalência sobre o direito económico.
Face ao supra exposto, entendo que, estando em causa a protecção de um direito fundamental, nunca o artigo 1346.º pode ser entendido no sentido restritivo, mas antes abrangendo todos os prédios que, localizando-se na proximidade do prédio do lesado oponente, reúnam as condições previstas na norma, isto é, ou causem um prejuízo substancial para o uso do imóvel, ou, não resultem da utilização normal do prédio de que emanam.

Quanto à segunda dificuldade de interpretação, sou levada a concordar com os professores Pires de Lima e Antunes Varela, no sentido de a oposição com fundamento no prejuízo substancial e a com fundamento no uso anormal do prédio serem alternativas.
Efectivamente, tal é a consequência da escolha do legislador pela expressão ‘ou’ em vez de ‘e’.
O ponto de discórdia aqui parece residir na possibilidade de se aceitar a oposição do proprietário do prédio vizinho no caso de a emissão de fumo, produção de ruídos ou factos semelhantes, não comportar para aquele um prejuízo substancial.
Ora, como inclusivamente já se falou numa das aulas do Professor Vasco Pereira da Silva, a teoria clássica da responsabilidade civil joga muito mal com as questões ambientais, teoria essa à qual o Professor Menezes Cordeiro permanece fiel.
Assim, a emissão de fumos ou produção de ruídos e todas as restantes situações previstas no artigo 1346.º, se forem o resultado de um uso anormal do imóvel de que emanam, e ainda que não exista um prejuízo directo e concreto para o proprietário do prédio vizinho, é a meu ver fundamento bastante para conceder àquele proprietário a legitimidade de se opor. Isto tendo em conta que o direito do ambiente trata muitas vezes de interesses difusos, aos quais não está, nem pode estar, subjacente uma lógica de responsabilidade civil baseada na causalidade adequada.

Obrigada.

Filipa Pereira Paixão

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