quinta-feira, 25 de outubro de 2007

Caros colegas , debrucei-me sobre este assunto e tirei as seguintes conclusões:


Relativamente a esta temática, há a estabelecer importantes noções prévias sobre as possibilidades de impugnação por via contenciosa, do referido acto administrativo que conduziu à instalação dos cabos de alta tensão.
Na situação em análise, alega a associação ambientalista que estão a ser postos em causa “ os direitos fundamentais à saúde e ao ambiente e qualidade de vida da população local” de Lugar de Ermo.
Em primeiro lugar, há diversos diplomas normativos que efectivamente contemplam estes direitos, os já conhecido artigo 9º C.R.P, que é um direito preceptivo fundamental, e os artigos 66ºnº1 C.R.P, 81º e 90º C.R.P que embora com carácter programático e portanto carentes de exequibilidade, impõe ao Estado incumbências fundamentais no que diz respeito ao bem-estar económico e social bem como a qualidade de vida das pessoas, o que num quadro baseado num principio do desenvolvimento sustentável e do principio da proporcionalidade vincula a administração e respectivas entidades públicas a um desenvolvimento harmonioso dos bens jurídicos em causa (ambiente, e qualidade de vida vs. criação e fornecimento de energia) aquando da prossecução do “salus público”.
Por este motivo, parece a meu ver, isento de sentido a afirmação do Presidente do Conselho de Administração da REN, quando relativamente ás possíveis consequências nefastas que estes cabos de alta tensão causariam à população local referiu que “mesmo que os tivessem, os benefícios daí resultantes para toda a comunidade seriam sempre incomparavelmente superiores aos prejuízos causados aos seis habitantes de Lugar Ermo”, estes habitantes e ainda que em pouco número, têm o direito à saúde, ao ambiente e em “ultimo ratio” a um direito à vida artigo 12ºC.R.P, que pode ser posto em causa com a referida instalação.
No que toca á questão da natureza jurídica destes direitos fundamentais, o doutor Jorge Miranda fala aqui de uma “teoria da reserva do possível”, ou seja, a ideia de que estes direitos são concretizados na medida em que for plausível materialmente a sua exequibilidade, esta tese é refutada pelo doutor Vasco Pereira da Silva que afirma que estes direitos fundamentais têm uma dimensão programática mas igualmente preceptiva, e desde logo susceptíveis de tutela jurídica.
Em relação ás normas infra-constitucionais relativas a este tema, há a referir a lei de bases de 11/87 de 7 Abril em que estes direitos vem expressamente tipificados nos artigos 2º, 4º, 7º , sendo a meu ver de destacar o artigo 4ºalinea f) quando informa que devem ser tomadas medidas para a “promoção de acções de investigação do impacto das acções humanas sobre o ambiente” , estando aqui implícito uma ideia também subjacente ao principio da prevenção, mas também da precaução contemplado no artigo 3º alínea a) deste mesmo diploma., sendo mais uma vez de “contradizer” a afirmação do Presidente do Conselho de Administração da REN, que consolida a sua posição de legitimar a instalação dos cabos de alta tensão por “não estar cientificamente provado que os cabos de alta tensão possuam consequências nefastas para o ambiente e a saúde das pessoas”, esquecendo-se a meu ver, que também não está provado cientificamente que não o seja , o que “mutatis mutandis” é uma “faca de dois gumes”, donde deveria ser dada clara supremacia ao bem jurídico vida, saúde, e ambiente, e elaborar um estudo anterior à instalação (e não o contrario, licenciamento, instalação e só depois o estudo do impacto ambiental).
Evidentemente que a criação e fornecimento de energia é uma importante tarefa estadual, e enquadra-se a meu ver no âmbito dos direitos fundamentais de 2ºgeração, mas tem de haver sempre no entender do Prof. Dr. Vasco Pereira da Silva uma concordância prática entre estes e os direitos fundamentais de 3ºgeração(onde se abrange os direitos ambientais), situação que não se sucede no caso concreto em que todos os meios justificam os fins.
Mas será importante esclarecer esta questão sobre as possíveis consequências nefastas destas instalações, que com base em pesquisas feitas, chego a conclusões radicalmente contrárias ao Presidente do Conselho de Administração da REN.
Em primeiro lugar, um estudo científico recente da Universidade de Oxford, no Reino Unido, publicado no British Medical Journal, concluiu o aumento de 70 por cento das probabilidades de contrair leucemia em crianças que vivem a menos de 200 metros de linhas de alta tensão, sendo que também na Encosta de São Marcos no Concelho de Sintra, onde passam os cabos de alta tensão houve o surgimento de dez novos casos de cancro, o que para a expressividade populacional desta pequena povoação é um número preocupante. Outra importante anotação, é que a própria teoria da causalidade adequada está posta em causa no domínio do direito do ambiente e não se aplica neste âmbito, sendo que o facto de estar provado que cabos de alta tensão colocados a uma curta distância das povoações possam eventualmente produzir efeitos cancerígenos, é o suficiente para imputar responsabilidades ao ente público e estabelecer o nexo causal de culpa na hipótese de haver casos de cancro com esta situação relacionada (igual solução para o caso John Smith que contraiu a doença das “vacas loucas” a Encefalopatia Espongiforme Bovina denominada cientificamente como doença de Creutzfeldt-Jakob).
Em termos de influência económica e patrimonial na população, nomeadamente nos seus bens imóveis, há a ter em conta o acórdão do tribunal da relação do Porto de 03.04.95 (BMJ, 446, p. 352) que refere que "a passagem sobre um prédio de cabos de alta tensão constitui um dano real, indemnizável, em virtude da desvalorização do prédio resultante do facto de a mera existência e vizinhança com os cabos de alta tensão afastar naturalmente os compradores, receosos dos perigos latentes que aqueles induzem à generalidade das pessoas", também noutro acórdão da Relação do Porto (de 05.06.2001, CJ, III, p. 211), é sentenciado que "dado que os campos electromagnéticos gerados pelas linhas de alta tensão podem constituir perigo para a saúde de quem permanentemente lhes fica exposto, daí decorre uma desvalorização dos terrenos com aptidão aedificandi, dada a sua menor procura, da ordem dos 100%".
Se argumentos como a qualidade de vida, saúde e danos patrimoniais das pessoas não constituem motivos de sobra para refutar as ditas afirmações, preocupações ambientais mais concretas, como a electrocussão de aves e descaracterização da paisagem rural também tem de ser chamadas à colação, tal como foram no recente acórdão do STA em Outubro de 2007, que mandou desactivar todos os cabos de alta tensão entre Fanhões e Trajouce, no Concelho de Sintra.
Este mesmo acórdão refere que não é aceitável que os postes sejam colocados a menos de 25 metros das habitações, pelo que entendeu que se assim não for têm de ser desactivadas, há uma poluição nos termos do artigo 21º da lei de bases 11/87, pois afecta negativamente a saúde e o bem-estar das diferentes formas de vida, sendo uma acção proibida nos termos do artigo 26º lei de bases 11/87.
Também no domínio do decreto-lei 276/99 há o “dissecar” desta questão, englobando no artigo 2ºg) esta forma de poluição atmosférica, este diploma transpôs a directiva 96/62/CE de 27 Setembro, constituindo os Estados-membros na obrigação de actuarem nesta conformidade e com respeito à primazia do direito comunitário, sob pena de sobre estes poder ser intentada uma acção de incumprimento, ou mesmo uma acção por parte dos particulares (nomeadamente os habitantes de Lugar de Ermo com base no acordãos Van duyn e Ratti) junto do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias no caso de inobservância de transposição da directiva no exercício do poder administrativo por parte do governo estadual, ou mesmo no caso concreto a desconformidade da sua actuação com esta.
Igualmente no âmbito do Tratado de Roma, é definido no artigo 174º, e já após a Convenção de Estocolmo, que a comunidade deve contribuir no domínio do ambiente para a preservação da qualidade do ambiente, e da saúde das próprias pessoas, devendo basear as suas políticas com racionalidade e com respeito ao princípio da precaução, o que de facto nos leva a crer que o ambiente hoje em dia adquiriu não só uma dimensão política fulcral, como uma componente global a todos os níveis, tendo cada ser “humano mundial” individualmente considerado, o direito subjectivo de intentar acções nos tribunais nacionais e internacionais quando se sentir lesado nos seus direitos por actuações públicas ou privadas, que ponham directa ou indirectamente em causa o ambiente. Aliás esta ideia surge inicialmente com o celebre acórdão na Alemanha em Hamburgo no ano de 1970, do pescador que intentou uma acção contra uma fábrica por poluir o rio onde este pescava, e donde retirava o seu rendimento.
Em relação a este caso, e também relacionando com a pergunta nº2 de 17 Outubro feita pelo Prof. Doutor Vasco Pereira da Silva relativamente à atribuição ou não de um direito subjectivo próprio ás entidades não humanas, tenho a referir que no actual quadro e com base no que escrevi é desprovido de sentido esta atribuição, pois as questões ambientais não só adquiriram um significado a nível global entre entes humanos, como não humanos, pelo que será impossível dissociar os dois níveis, ambos estão relacionados e se o direito da humanidade de preservar o ambiente existe, logo os “direitos” dos animais, das florestas, das águas etc… também são protegidos e estão a este funcionalmente ligados, pelo que existência do direito subjectivo do homem de ter o ambiente e deste desfrutar, não seria concebível sem o respeito dos “direitos” que aos entes não humanos são reconhecidos através deste. Se houvesse direitos dos entes não humanos “de per si”, sem haver um direito do homem ao ambiente, estes não passariam de uma “folha de papel”, razão pela qual a meu ver a questão é desprovida de alcance prático, e quanto muito poderemos falar de uma “protecção jurídica objectiva” mas não de um direito subjectivo dos entes não humanos, para além do facto de carecerem de personalidade jurídica, e portanto de capacidade se serem “centro de imputação” de direitos e deveres.
Por todas estas razões e fundamentos jurídicos, há no meu entender, o reconhecimento de um direito material ambiental da associação e moradores de Lugar de Ermo para accionar a via contenciosa e impugnarem esta actuação da administração por vários motivos.
Em primeira linha há um vício do procedimento anterior à instalação, não houve a declaração do impacto ambiental favorável, sendo nos termos do artigo 37ºnº1 alínea a) do decreto-lei nº 69/2000 de 3 de Maio susceptíveis de serem puníveis com coima as entidades que executem projectos constantes do anexo I e II sem o respectivo estudo de impacto favorável, sendo que a instalação de transporte de energia eléctrica está contemplada no anexo II nº3 b) e portanto sujeita a este regime.
Este estudo é assim um parecer obrigatório e vinculativo ( artigo 98ºnº1 C.P.A) é um elemento essencial do acto segundo o artigo 30ºnº1 e 3 lei de bases 11/87 e a sua inexistência constitui uma causa de invalidade do acto administrativo(no caso o licenciamento), patenteada no artigo 133º nº1 C.P.A tendo os efeitos previstos no artigo 134ºC.P.A, além deste vício procedimental que inquina o licenciamento, há um vício material de um direito fundamental previsto na constituição, pelo que o mesmo procedimento seria sempre nulo nos termos do artigo 134ºnº2 d) C.P.A.
Assim sendo, e segundo o artigo 46ºnº2 a) e 50nº1 C.P.T.A pode ser formulado o pedido de declaração da nulidade do acto administrativo supra citado, este tem eficácia externa 51ºnº1 C.P.T.A, possuindo a associação ambientalista de Lugar de Ermo legitimidade activa para impugnar o acto nos termos dos artigos 9nº2 e 55ºnº1 c) C.P.T.A, igual legitimidade poderiam possuir os cidadãos individualmente considerados 55º nº1 a) C.P.T.A, dado que este é um direito subjectivo de todos individualmente considerados.
Relativamente á legitimidade activa, é de toda a importância focar aqui, que os direitos fundamentais de 3ºgeração implicam um exercício e participação activa dos cidadãos nas questões ecológico – ambientais, e só esta colaboração e atenção a estas causas pode sustentar o direito na defesa destes interesses.
Juntamente com esta acção e cumulando os pedidos nos termos dos artigos 5º, a associação de ambientalistas ainda poderá e deverá accionar o procedimento previsto nos artigos 36ºnº1 e) e 112ºnº2 f) C.P.T.A intimando o Estado e a respectiva empresa pública à adopção de uma conduta activa e positiva ,ou seja, desactivação das redes de alta tensão, isto porque os pressupostos do artigo 120º C.P.T.A estão preenchidos, havendo evidente procedência da acção a título principal nos termos do 120 nº1 a) e portanto “fumus boni iuris”.
Ainda se verifica o “periculum in mora” ou seja, o receio fundado da acção principal perder o seu efeito útil se não forem tomadas medidas conservatórias, nomeadamente a desactivação das redes, sob pena do surgimento de casos de cancro na região, 120ºnº2 c) C.P.T.A, só desta forma conseguir-se-á assegurar a observância do princípio da tutela jurisdicional efectiva contemplada no artigo 2º C.P.T.A.
Para terminar e no que diz respeito à afirmação do Presidente do Conselho de Administração da REN, que a instalação dos cabos de alta tensão foi devidamente licenciada pelas autoridades competentes, pelo que, a “haver irregularidades no procedimento, ou quaisquer responsabilidades públicas a apurar, estas seriam sempre imputáveis ao Ministério do Ambiente”, importa tecer dois comentários, em primeiro lugar que já vimos que o procedimento é nulo e violador de direitos fundamentais constitucionais no domínio do ambiente, pois não foi (ao contrário do que é referido nas declarações) devidamente licenciado, e em segundo lugar que a empresa pública que explora a rede eléctrica nacional não se pode imiscuir de responsabilidades delegando-as unicamente para o Estado, esta empresa aparece a explorar um serviço publico revestida de “ius imperi” pelo que faz parte da administração entendida em sentido amplo, e sob a qual também recaem consequências jurídico – procedimentais e materiais , artigos 37º e 38º lei de bases 11/87. O próprio artigo 10nº2 C.P.T.A. prevê a possibilidade de ser demandada neste procedimento uma pessoa colectiva de direito público e entidades públicas, constituindo mais um fundamento para a improcedência deste “falso” argumento, podendo ser feita uma coligação nos termos do artigo 12º nº1 a) C.P.T.A, sendo demandados quer o Estado representado pelo ministério, quer a empresa pública que explora a rede nacional de electricidade.
Além deste facto, juridicamente relevante é também o artigo 40º da lei de bases 11/87, que vem referir que independentemente de a pessoa ser um particular ou colectivo, privado ou público é passível de direitos e deveres nesta matéria, pelo qual podem e devem ser responsabilizados todos os entes que fizerem “tábua rasa” destes bens jurídicos ambientais, sendo por igual “ratio” irrelevante a argumentação do Presidente do Conselho de Administração da REN. Este será também responsabilizado, há pois uma ideia de que as questões ambientais são de todos, e a todos dizem respeito.

João Guerra




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